domingo, 18 de janeiro de 2015

A flor sagrada é uma campainha que toca em silêncio

   Quando eu era criança, Massamá era um Lugar composto por um conjunto de pequenas habitações de construção chã, em volta do qual se estendiam casais e quintas com terrenos a perder de vista até Tercena, Cacém ou Queluz.
   Havia algumas crianças com as quais brincava, mas a maior parte do meu tempo era passado na companhia dos cães – a Violeta, uma perdigueira extremamente meiga, e o King, um pastor alemão que me transportava no seu lombo. Com eles explorava estes campos que, na Primavera, se cobriam de flores silvestres tingindo a paisagem de roxo, amarelo e vermelho. Talvez seja por isso que estas se mantiveram as minhas cores preferidas até hoje. Havia dezenas de espécies de pássaros, insectos, coelhos, algumas cobras e ouriços caixeiros, e toda esta fauna autóctone habitava o meu quotidiano de passeios intermináveis pelos campos - hoje ruas de alcatrão que formam uma teia entre os prédios e algumas construções antigas que perduraram e que é preciso descobrir.
    Nos meus passeios primaveris, entretinha-me a descobrir flores secretas, que eram aquelas que existiam em menos quantidade. Eram pequenas e muito belas, talvez por serem raras. Entre elas contavam-se as campainhas, com a forma de uma campânula de molde oblongo, que escondia um “pêndulo” amarelo. Eram carnudas, castanhas, quase roxas (ou cor de beringela), e formavam umas pequenas riscas no topo que se tornavam definidas junto ao caule, se as observávamos com atenção. Estas eram as minhas eleitas, e nunca as colhia por serem, para mim, sagradas; tão diferentes de qualquer outra flor, não possuíam folhas nem pétalas, nem se prestavam a serem colocadas numa jarra. Brotavam discretas e escondidas no meio de ervas e outras plantas que floriam. Descobri-las exigia persistência e dedicação à tarefa de conviver com os segredos da natureza. Descobri-las era a resposta dos deuses à minha curiosidade pelo mundo.
   Há dias, no meu percurso pelo jardim, encontrei uma dessas campainhas, esgueirada para a beira do caminho, como quem grita: “Estou aqui! Lembras-te?”. E fiquei a pensar de que quereriam os deuses que me recordasse nestes dias frios e sem luz. De alguma dessas coisas maiores que fazem parte da eternidade, com que convivemos nos dias da infância. De alguma Primavera, dessas que acenam em dias agrestes de Inverno.
   Hoje resolvi ir colhê-la com uma foto, mas já só me foi concedida metade da flor, já quebrada. Deitada no húmus.
Massamá, 18 de Janeiro de 2015