sábado, 25 de abril de 2020

O homem da Rua S


Na Rua S, o silêncio estrondeou na pressão do mundo suspenso. Não houve tempo sequer para arrumar os passos nas ruas.
Recolhimento abrupto provocado por nada que se visse. Tememos fantasmas, almas penadas, lobisomens, e outros papões da imaginação dos oprimidos do medo. De resto, não me recordo de alguma vez termos fugido do invisível, do incorpóreo, do que não tem odor nem som, mas que nos persegue, tácito como um espectro, e nos mata, sondava o homem da Rua S. Ainda ontem estas ruas do centro da cidade vociferavam em múltiplas línguas desse frenesim de consumo turístico. Hoje, nem dois passos ecoam no oco da cidade nua.
O homem da Rua S sentiu a paz plena por poder respirar o silêncio há muito perdido no centro histórico onde habitava. Já se ouviam os pássaros. De onde teriam regressado? O estancar abrupto da engrenagem da vida agradou-lhe. Imergiu em projectos, afazeres, rotinas novas, e, fez compras através da Internet, onde agora estavam todos reunidos nessa comunidade tão bem engendrada, o bastante para as suas necessidades materiais, físicas, intelectuais, sociais: compras online, actividade física, música, livros, notícias sobre o medo, que não o atormentava porque tinha decidido não sair de casa, nem sequer para fruir a súbita quietude da Rua S.
O homem da Rua S foi seguindo o rumo dos dias, satisfazendo projectos que não suspeitaria poder concretizar há poucas semanas atrás. Finalmente tinha tempo. Tempo!
O tempo é um abismo traiçoeiro que ilude na sua cadência insondável. O homem da Rua S vagueou pelos dias como um caminhante fortuito no deserto. Essa imensidão da liberdade inusitada dos primeiros dias tornara-se a Medusa que o transformaria em rocha. A solidão não é estar sozinho, mas a ausência de humanidade. Há uns dias que sondava, e apercebera-se que nem uma só vida humana se manifestava em seu redor. Nem um som de vizinhança, ninguém abeirado numa janela, o troar de uma porta que bate. Nada.
O homem da Rua S trabalhava fora do bairro onde vivia e fugia ao afã das centenas de turistas que por ali rodopiavam diariamente, antes da pandemia, por isso, nunca se apercebera de que já ninguém habitava as redondezas. Não tinha um único vizinho, nem no prédio de quatro andares, onde ocupava o último, nem nos que lhe eram próximos. Tudo convertido em hostels e airbnb. Confirmava-o o contentor do lixo, onde apenas ressoava o saco com os restos que agora ali depositava dia sim dia não.
Recuou em pensamentos e, na verdade, não se lembrava de se ter cruzado com a mesma pessoa duas vezes seguidas. Saía cedo e regressava tarde, com pressa e embrenhado em pensamentos que o alheavam da realidade que habitava a Rua S.
A Rua S era apenas a sua casa, o lugar onde se recolhia, abrigado do mundo. Era o lugar de onde tinham fugido todos os pássaros. Era o mundo fora do mundo.
Consciente, agora, da sua solidão, o homem da Rua S resolveu sair do bairro, de novo habitado pelo imenso chilrear de pássaros, com vista a cruzar-se com alguém; um olhar furtivo, a cadência de passos na calçada, um aceno de quem cede passagem, um qualquer movimento humano bastar-lhe-ia para saciar esse vazio social. Social. Por mais “gostos” e “corações”, comentários e elogios, lamentações e queixumes, impressões e opiniões trocadas e lançadas à mercê de quem queira esbracejar nas redes sociais, nada colmatava a suprema necessidade do contacto humano. Naquele momento bastava-lhe o afago de um olhar que se desvia pelo medo do contágio.
Vagueou pelas ruas sinuosas da parte antiga da cidade, transpôs as fronteiras que delimitam os bairros históricos, e ninguém que se avistasse ao longe, as janelas mudas, portas inertes. Uma existência exangue. Julgou, então, encontrar-se numa cidade completamente devoluta e sentiu-se escorregar para o abismo do medo, ao qual se propôs resistir. O homem da Rua S começou a cantar e a reverberação da sua voz na alvenaria das casas respondeu-lhe em coro. Essa sinfonia, que incluía o chilreio das aves no recolher crepuscular, assemelhava-se a um requiem que o mortificava. Mas não se coibiu de levar a cabo este hino até esbarrar com o seu reflexo numa montra que se debruçou diante dele. Neste sobressalto, alguém lhe acenava do interior difuso da loja, cujos vidros não eram limpos há algum tempo. Aproximou-se, tentando alcançar aquele espectro que, como ele, ainda respirava. Avistou ao fundo um vulto que lhe indicava a porta de entrada a que se acedia pela rua perpendicular àquela onde se encontrava. Deu a volta, agitado. Estava ali um homem. Estava ali alguém! Ao fim de um dia em que errou pela cidade deserta, encontrou vida humana que lhe acenasse. Entrou na loja de um passarinheiro.
No exíguo espaço de vinte metros quadrados, encontravam-se centenas de aves aprisionadas. Algumas, de maiores dimensões, agrilhoadas, perscrutavam-no.  Eram bairros e bairros habitados por pássaros tão diversos nas formas e nas cores e tão iguais na sua sujeição. O homem da Rua S estendeu o olhar, percorrendo uma a uma as casas gradeadas que forravam as paredes da loja, sobrepostas do chão até ao tecto. Um trinar enérgico perfurou o silêncio que até então se impunha, sombrio. Por que cantará? – pensou o homem da Rua S.
Os pássaros que isolamos numa gaiola cantam mais. É o que dizem os passarinheiros. Mas ninguém falou.
Avançou até ao fundo da sala, observando cada uma das mais diversas aves, que sobre ele inclinavam o olhar, curvando a cabeça. Passou alguns minutos neste enlevo. Tantos seres com asas, com vida, aprisionados em caixas dispostas em camadas, sem se verem, sem voarem, sem terra nem céu. E ainda cantam? Tão diversos, aqueles pássaros teriam vindo dos mais variados lugares do mundo, de florestas densas e imperscrutáveis, de planícies vastas, de altivas montanhas, e aqui reduzidas à negritude de um rés-do-chão húmido de um bairro da cidade. Pobres aves! – cogitava o homem da Rua S.
As suas deambulações mentais foram interrompidas pelo grito rouco de um papagaio cinzento que roía a pele áspera da pata enquanto o fitava insistentemente. Este som estrídulo despertou-o para o desaparecimento do homem que ele vira através da montra da loja e que lhe acenara para que entrasse. Movimentou-se rapidamente pela sala sem o encontrar. Abriu a única porta que existia no interior da loja, que dava acesso à casa de banho, onde lhe pareceu ver alguns sacos, umas gaiolas vazias e dois panos espessos pendurados junto do lavatório. Como a luz era escassa, perguntou: «Está aí alguém?». A sua voz surpreendeu-o como se fosse exterior a ele próprio.  Assustou-se com esse som produzido pela pergunta que acabara de formular e que parecia ter-lhe sido dirigido. Lembrou-se que talvez esta impressão proviesse de não falar há muito tempo. Há quase um mês fechado entre quatro paredes, isolado, duas ou três conversas telefónicas no início do isolamento a respeito do lay-off a que recorrera a empresa onde trabalhava. Não falava há quase um mês… era verdade, ou mais. Ciente desta estranha constatação, resolveu retomar a pergunta que deixara suspensa: «Está aí alguém?», e reforçou, sentindo-se acompanhado pelo som da sua voz que continuava a parecer-lhe vinda de outro corpo: «Quem está aí?». O papagaio, apesar de agrilhoado, debruçou-se no pequeno poleiro onde lhe era possível movimentar-se e replicou: «És tu.». Por instantes, o homem da Rua S pensou que seria o passarinheiro, mas não foi mais do que uma fracção de segundo que lhe revelou a proveniência daquela voz rouca e estridente. Era o pássaro cinzento que lhe respondia. Fechou a porta onde não havia mais que quietude e contornou de novo o conjunto de gaiolas empilhadas no centro da sala formando um bloco de apartamentos até ao tecto da sala. Percorreu-a pelos quatro cantos. Convenceu-se de que estava sozinho. Onde estaria o homem que lhe havia acenado para o exterior? Repetiu o pensamento em voz alta, mais para exercitar a voz há tanto tempo inerte do que esperançoso de obter resposta: «Onde estará o homem que me acenou pelo vidro?». Mais uma vez o som estrídulo respondeu: «És tu.». E repetiu: «És tu!».
Sou eu, pensou o homem da Rua S. Talvez seja. Não há aqui mais ninguém. Talvez tenha sido o meu reflexo no vidro o homem que vi. Talvez cioso por encontrar alguém me tenha iludido. Algum movimento de uma árvore que se tenha transfigurado num aceno, num convite. Talvez seja convidado de mim mesmo no reduto da solidão.
A noite desabara e o homem da Rua S estava exausto de tanto vaguear. Nem sabia ao certo em que ponto dos arrabaldes da cidade se encontrava. A caminhada solitária, a Rua S solitária, os seus intentos malogrados; apenas uma miragem de passarinheiro. Ficava ali.
Estendeu-se sobre os panos que avistara na casa de banho. As gaiolas iluminadas pela luz da rua, os pássaros de cabeça recolhida sob uma das asas. Ele com a cabeça sobre um dos braços. Todos encarcerados, inexistentes, viventes, porém. Adormeceu.

Raquel Alves Coelho
24 de Abril de 2020