Na Rua S, o silêncio estrondeou na
pressão do mundo suspenso. Não houve tempo sequer para arrumar os passos nas
ruas.
Recolhimento abrupto provocado por nada
que se visse. Tememos fantasmas, almas penadas, lobisomens, e outros papões da
imaginação dos oprimidos do medo. De resto, não me recordo de alguma vez termos
fugido do invisível, do incorpóreo, do que não tem odor nem som, mas que nos
persegue, tácito como um espectro, e nos mata, sondava o homem da Rua S. Ainda
ontem estas ruas do centro da cidade vociferavam em múltiplas línguas desse
frenesim de consumo turístico. Hoje, nem dois passos ecoam no oco da cidade
nua.
O homem da Rua S sentiu a paz plena
por poder respirar o silêncio há muito perdido no centro histórico onde
habitava. Já se ouviam os pássaros. De onde teriam regressado? O estancar
abrupto da engrenagem da vida agradou-lhe. Imergiu em projectos, afazeres,
rotinas novas, e, fez compras através da
Internet, onde agora estavam todos reunidos nessa comunidade tão bem
engendrada, o bastante para as suas necessidades materiais, físicas,
intelectuais, sociais: compras online,
actividade física, música, livros, notícias sobre o medo, que não o atormentava
porque tinha decidido não sair de casa, nem sequer para fruir a súbita quietude
da Rua S.
O homem da Rua S foi seguindo o rumo
dos dias, satisfazendo projectos que não suspeitaria poder concretizar há
poucas semanas atrás. Finalmente tinha tempo. Tempo!
O tempo é um abismo traiçoeiro que
ilude na sua cadência insondável. O homem da Rua S vagueou pelos dias como um
caminhante fortuito no deserto. Essa imensidão da liberdade inusitada dos
primeiros dias tornara-se a Medusa que o transformaria em rocha. A solidão não
é estar sozinho, mas a ausência de humanidade. Há uns dias que sondava, e apercebera-se
que nem uma só vida humana se manifestava em seu redor. Nem um som de
vizinhança, ninguém abeirado numa janela, o troar de uma porta que bate. Nada.
O homem da Rua S trabalhava fora do
bairro onde vivia e fugia ao afã das centenas de turistas que por ali
rodopiavam diariamente, antes da pandemia, por isso, nunca se apercebera de que
já ninguém habitava as redondezas. Não tinha um único vizinho, nem no prédio de
quatro andares, onde ocupava o último, nem nos que lhe eram próximos. Tudo
convertido em hostels e airbnb. Confirmava-o o contentor do
lixo, onde apenas ressoava o saco com os restos que agora ali depositava dia
sim dia não.
Recuou em pensamentos e, na verdade,
não se lembrava de se ter cruzado com a mesma pessoa duas vezes seguidas. Saía
cedo e regressava tarde, com pressa e embrenhado em pensamentos que o alheavam
da realidade que habitava a Rua S.
A Rua S era apenas a sua casa, o
lugar onde se recolhia, abrigado do mundo. Era o lugar de onde tinham fugido
todos os pássaros. Era o mundo fora do mundo.
Consciente, agora, da sua solidão, o
homem da Rua S resolveu sair do bairro, de novo habitado pelo imenso chilrear
de pássaros, com vista a cruzar-se com alguém; um olhar furtivo, a cadência de passos
na calçada, um aceno de quem cede passagem, um qualquer movimento humano
bastar-lhe-ia para saciar esse vazio social. Social. Por mais “gostos” e “corações”,
comentários e elogios, lamentações e queixumes, impressões e opiniões trocadas
e lançadas à mercê de quem queira esbracejar nas redes sociais, nada colmatava
a suprema necessidade do contacto humano. Naquele momento bastava-lhe o afago
de um olhar que se desvia pelo medo do contágio.
Vagueou pelas ruas sinuosas da parte
antiga da cidade, transpôs as fronteiras que delimitam os bairros históricos, e
ninguém que se avistasse ao longe, as janelas mudas, portas inertes. Uma
existência exangue. Julgou, então, encontrar-se numa cidade completamente devoluta
e sentiu-se escorregar para o abismo do medo, ao qual se propôs resistir. O
homem da Rua S começou a cantar e a reverberação da sua voz na alvenaria das
casas respondeu-lhe em coro. Essa sinfonia, que incluía o chilreio das aves no
recolher crepuscular, assemelhava-se a um requiem que o mortificava. Mas não se
coibiu de levar a cabo este hino até esbarrar com o seu reflexo numa montra que
se debruçou diante dele. Neste sobressalto, alguém lhe acenava do interior
difuso da loja, cujos vidros não eram limpos há algum tempo. Aproximou-se,
tentando alcançar aquele espectro que, como ele, ainda respirava. Avistou ao
fundo um vulto que lhe indicava a porta de entrada a que se acedia pela rua
perpendicular àquela onde se encontrava. Deu a volta, agitado. Estava ali um
homem. Estava ali alguém! Ao fim de um dia em que errou pela cidade deserta,
encontrou vida humana que lhe acenasse. Entrou na loja de um passarinheiro.
No exíguo espaço de vinte metros
quadrados, encontravam-se centenas de aves aprisionadas. Algumas, de maiores
dimensões, agrilhoadas, perscrutavam-no. Eram bairros e bairros habitados por pássaros
tão diversos nas formas e nas cores e tão iguais na sua sujeição. O homem da
Rua S estendeu o olhar, percorrendo uma a uma as casas gradeadas que forravam
as paredes da loja, sobrepostas do chão até ao tecto. Um trinar enérgico
perfurou o silêncio que até então se impunha, sombrio. Por que cantará? –
pensou o homem da Rua S.
Os pássaros que isolamos numa gaiola
cantam mais. É o que dizem os passarinheiros. Mas ninguém falou.
Avançou até ao fundo da sala,
observando cada uma das mais diversas aves, que sobre ele inclinavam o olhar, curvando
a cabeça. Passou alguns minutos neste enlevo. Tantos seres com asas, com vida,
aprisionados em caixas dispostas em camadas, sem se verem, sem voarem, sem
terra nem céu. E ainda cantam? Tão diversos, aqueles pássaros teriam vindo dos
mais variados lugares do mundo, de florestas densas e imperscrutáveis, de
planícies vastas, de altivas montanhas, e aqui reduzidas à negritude de um
rés-do-chão húmido de um bairro da cidade. Pobres aves! – cogitava o homem da
Rua S.
As suas deambulações mentais foram
interrompidas pelo grito rouco de um papagaio cinzento que roía a pele áspera
da pata enquanto o fitava insistentemente. Este som estrídulo despertou-o para
o desaparecimento do homem que ele vira através da montra da loja e que lhe
acenara para que entrasse. Movimentou-se rapidamente pela sala sem o encontrar.
Abriu a única porta que existia no interior da loja, que dava acesso à casa de
banho, onde lhe pareceu ver alguns sacos, umas gaiolas vazias e dois panos espessos
pendurados junto do lavatório. Como a luz era escassa, perguntou: «Está aí
alguém?». A sua voz surpreendeu-o como se fosse exterior a ele próprio. Assustou-se com esse som produzido pela
pergunta que acabara de formular e que parecia ter-lhe sido dirigido. Lembrou-se
que talvez esta impressão proviesse de não falar há muito tempo. Há quase um
mês fechado entre quatro paredes, isolado, duas ou três conversas telefónicas no
início do isolamento a respeito do lay-off
a que recorrera a empresa onde trabalhava. Não falava há quase um mês… era
verdade, ou mais. Ciente desta estranha constatação, resolveu retomar a
pergunta que deixara suspensa: «Está aí alguém?», e reforçou, sentindo-se
acompanhado pelo som da sua voz que continuava a parecer-lhe vinda de outro
corpo: «Quem está aí?». O papagaio, apesar de agrilhoado, debruçou-se no
pequeno poleiro onde lhe era possível movimentar-se e replicou: «És tu.». Por
instantes, o homem da Rua S pensou que seria o passarinheiro, mas não foi mais
do que uma fracção de segundo que lhe revelou a proveniência daquela voz rouca
e estridente. Era o pássaro cinzento que lhe respondia. Fechou a porta onde não
havia mais que quietude e contornou de novo o conjunto de gaiolas empilhadas no
centro da sala formando um bloco de apartamentos até ao tecto da sala. Percorreu-a
pelos quatro cantos. Convenceu-se de que estava sozinho. Onde estaria o homem
que lhe havia acenado para o exterior? Repetiu o pensamento em voz alta, mais
para exercitar a voz há tanto tempo inerte do que esperançoso de obter
resposta: «Onde estará o homem que me acenou pelo vidro?». Mais uma vez o som
estrídulo respondeu: «És tu.». E repetiu: «És tu!».
Sou eu, pensou o homem da Rua S.
Talvez seja. Não há aqui mais ninguém. Talvez tenha sido o meu reflexo no vidro
o homem que vi. Talvez cioso por encontrar alguém me tenha iludido. Algum
movimento de uma árvore que se tenha transfigurado num aceno, num convite.
Talvez seja convidado de mim mesmo no reduto da solidão.
A noite desabara e o homem da Rua S
estava exausto de tanto vaguear. Nem sabia ao certo em que ponto dos arrabaldes
da cidade se encontrava. A caminhada solitária, a Rua S solitária, os seus
intentos malogrados; apenas uma miragem de passarinheiro. Ficava ali.
Estendeu-se sobre os panos que
avistara na casa de banho. As gaiolas iluminadas pela luz da rua, os pássaros de
cabeça recolhida sob uma das asas. Ele com a cabeça sobre um dos braços. Todos
encarcerados, inexistentes, viventes, porém. Adormeceu.
Raquel Alves Coelho
24 de Abril de 2020