A ALHEIRA
Trouxe uma alheira de Lamego.
Assada no forno, dissipou aromas que me trouxeram à memória a destreza de quem
inventou aquela maneira de ludibriar a tirania da Inquisição. Que elegância se
eleva perante a malvadez na invenção de uma alheira. Devo ter alguma
ascendência judia, talvez. Não que o saiba, mas porque todos teremos certamente
origem num único ponto, numa espécie de raça única de onde germinou a
humanidade. Lembro-me de pensar em criança que seria de todas as raças e
provinha de todos os povos. A minha mãe costumava dizer-me que os meus olhos
papudos eram característicos dos lapões. E mostrava-me, num livro, de cujo nome
não me lembro, o rosto de uma jovem da Lapónia com as pálpebras salientes, que
viam em mim. Parece que esta espécie de edema protege da luz intensa do sol
reflectido na neve. Mas eu, se vivi na Lapónia, foi há centenas ou milhares de
anos. Mais tarde, ao ler um livro de contos populares chineses, lá pelos meus
dez anos, convenci-me de que as minhas origens estavam na China (também me
diziam que tinha olhos de chinesa, o que me permitia escolher). Os chineses
também têm esta membrana que cobre as pálpebras, tal como os japoneses e os
lapões. E eu. A minha afinidade com essa cultura, a música e as danças, o
teatro de sombras, os leques, o modo de estar à mesa, a poesia, a escrita e a
cultura chineses, tudo me fascinou, desde sempre, com uma espécie de saudade
prévia. Ou porque há coisas que conhecemos antes de sabermos que existem. Foi
essa existência prévia que me convenceu da minha ascendência japonesa: uma
longa história que ainda não terminou. Depois, foi Marrocos, onde cada recanto
me foi tão próximo como a cidade onde nasci. Revisitei pessoas que nunca vi,
reconheci aromas, cores, a luz baça da tarde na quietude languida de Agosto, os
sabores e o toar das vozes, mais uma vez o teatro, a música, a voluptuosidade. Então,
fui marroquina, também. Depois, ainda - e antes de tudo isto - trouxe em mim o
sangue de todos os povos, dessa raça una que se desmembrou e reside fragmentada
na memória dos tempos. Essa humanidade que gravita em nós e em nós desfalece,
essa onda que se abate na areia, se esvai, insondável. Aparentemente
transitória. A arbitrariedade da guerra. A inevitabilidade de inventar
alheiras. Nunca tinha pensado na elegância de uma alheira diante de um tirano.
Uma delícia, ademais.
Raquel Alves Coelho | 03/03/22
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