Estação Terminal
O som dos ferros tritura os segundos da paisagem. A
urbe engolida pelo tempo. O subúrbio traz a indiferença das horas. Fica para
trás. Atrás de mim. Recua. Recua no tempo ilimitado. O subúrbio é um poço sem
eco. Vai até Lisboa. Entre Sintra e Lisboa um poço sem eco. Um espelho baço.
Viagem de aço.
Trago da cidade o bater dos ferros. O guincho
metálico da adolescência. O som metálico entrecortado pela voz gravada de
mulher. No comboio. Qual mulher? - «Estação terminal». Viagem para a eternidade.
Chego a Sintra. - «Estação terminal». Terminal é a evasão. O ruído o betão o
negrume as sombras sobrepostas das estradas a escola onde não fui hoje. Tudo
ficou triturado ao som dos ferros. Esta é a minha música. Sem melodia. Cadência
percutida. Este é o comboio que me leva a Sintra.
Estado terminal – subo a serra e o cheiro a terra e
musgo devolve-me o pensamento.
Este silêncio tem mais palavras do que a tua voz.
Sintra tem o olhar estendido entre a serra e o mar.
O arvoredo engole-me os passos. Subo, subo, fujo. De mim.
Do outro lado estende-se o vasto subúrbio. Não o
vejo. Adivinho-o para além da névoa. Que me alberga. Ainda oiço o som dos
ferros. O comboio e a estação terminal. Esta-ção. Ter-mi-nal.
Subo a serra como quem levita e se desprende. Subo
até ao ponto mais alto. Onde existe um resto de convento. Na embriaguez do
húmus. Numa náusea avisto o mar. O vasto mar... um extenso monólogo.
O mar não é apenas o lago que vejo ao longe. É onde
me revejo no espelho dos pensamentos. Onde mergulho e o meu corpo se dissolve.
Nesta gradação de verdes consigo pressentir o teu
amor por mim. Não que mo dissesses. Não que te conheça. Mas os meus passos
sobre o empedrado escorregadio, polido pelos passos do tempo, o som da água que
escorre nas veias da serra e que as fontes choram. A terra que anuncia o teu
odor. Tudo me avisa o teu amor por mim. Como numa pintura. Justamente naquela
janela onde vejo a tua eterna espera. Aquela janela em guilhotina tornada a sul
onde se suicidam pensamentos desde as horas extintas do passado. É a janela
onde me apaixono. Decidi assim, do outro lado da estrada, há cerca de um mês e
meio, ou pouco mais. Chovia e a janela fechada. Esbocei-te nas gotas da chuva fria.
Eu não estou à tua espera. Não trago relógio nem
sei ler o sol. Hoje está sol depois do bosque cerrado. Já me esquecia de te
avisar, a ti, que esperas na obscuridade. Eu não sei quem és na solidão
cumprida. Não mais do que um esboço feito de chuva. Uma janela fechada, de
guilhotina. Deste solar mudo.
Quantos servos de vidas sofridas para erguer estes
palácios? Estes bosques, jardins esculpidos na serra. Para ser teu o prazer do
ócio. Tu, sentada nesse demorado retrato, que espreitas por uma moldura
entalhada. Sólida. Dourada. Que te entregas nesse olhar impreciso que atravessa
os tempos.
Sinto as horas lânguidas dos espectros. O folhear
dos livros dos poetas. E os livros sem letras dos analfabetos. Dos que
esculpiram a eternidade na serra. Leio no silêncio dos teus lábios o que não
posso descrever. Sintra é a confidência do mais profundo desejo, da eternidade imaterial
do mistério. Onde a Natureza e o Homem se abraçam num beijo imenso. É luxúria!, neste brotar constante de arte e
húmus.
Regresso ao Cacém. Aparece o João. Não Foste às
aulas? Estive a fazer um trabalho. O que é que estás a ouvir? Gabriel o
Pensador. «Eu quero viver numa favela. Eu quero viver numa favela. Eu quero
viver numa favela...». Esta cidade não tem melodia, percute-se no barulho dos
ferros. O «amor» entra no dicionário e sai no teste de Português. Como na
viagem de comboio. Viagem de aço. O amor é a estação terminal.
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