A flor sagrada é uma
campainha que toca em silêncio
Quando eu era criança, Massamá era um Lugar composto por um conjunto de
pequenas habitações de construção chã, em volta do qual se estendiam casais e
quintas com terrenos a perder de vista até Tercena, Cacém ou Queluz.
Havia algumas crianças com as quais brincava, mas a maior parte do meu
tempo era passado na companhia dos cães – a Violeta, uma perdigueira
extremamente meiga, e o King, um pastor alemão que me transportava no seu lombo.
Com eles explorava estes campos que, na Primavera, se cobriam de flores
silvestres tingindo a paisagem de roxo, amarelo e vermelho. Talvez seja por
isso que estas se mantiveram as minhas cores preferidas até hoje. Havia dezenas
de espécies de pássaros, insectos, coelhos, algumas cobras e ouriços caixeiros,
e toda esta fauna autóctone habitava o meu quotidiano de passeios intermináveis
pelos campos - hoje ruas de alcatrão que formam uma teia entre os prédios e
algumas construções antigas que perduraram e que é preciso descobrir.
Nos meus passeios primaveris, entretinha-me
a descobrir flores secretas, que eram aquelas que existiam em menos quantidade.
Eram pequenas e muito belas, talvez por serem raras. Entre elas contavam-se as campainhas,
com a forma de uma campânula de molde oblongo, que escondia um “pêndulo”
amarelo. Eram carnudas, castanhas, quase roxas (ou cor de beringela), e
formavam umas pequenas riscas no topo que se tornavam definidas junto ao caule,
se as observávamos com atenção. Estas eram as minhas eleitas, e nunca as colhia
por serem, para mim, sagradas; tão diferentes de qualquer outra flor, não possuíam
folhas nem pétalas, nem se prestavam a serem colocadas numa jarra. Brotavam
discretas e escondidas no meio de ervas e outras plantas que floriam.
Descobri-las exigia persistência e dedicação à tarefa de conviver com os
segredos da natureza. Descobri-las era a resposta dos deuses à minha curiosidade
pelo mundo.
Há dias, no meu percurso pelo jardim, encontrei uma dessas campainhas, esgueirada
para a beira do caminho, como quem grita: “Estou aqui! Lembras-te?”. E fiquei a
pensar de que quereriam os deuses que me recordasse nestes dias frios e sem luz.
De alguma dessas coisas maiores que fazem parte da eternidade, com que
convivemos nos dias da infância. De alguma Primavera, dessas que acenam em dias
agrestes de Inverno.
Hoje resolvi ir colhê-la com uma foto, mas já só me foi concedida metade
da flor, já quebrada. Deitada no húmus.
Massamá, 18 de Janeiro de 2015
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