No quarto dos meus avós maternos, com quem passei férias desde a minha
mais remota existência. Fui feita aqui, nesta casa, e baptizada no castelo de Sesimbra.
Esta casa, pequenos objectos imutáveis, as ruas, vestígios dos campos de
outrora onde ainda não edificaram casas, a paisagem a serra e o mar. Tudo isto
sedimenta anos de recordações. As memórias, tantas, explorações infindáveis de episódios
que se sucedem, engrenagens incessantes de ideias, sensações tão distantes. Com
cerca de três anos saltei a janela da sala para ir brincar com a menina da casa
em frente. Lembro-me da ansiedade de fazer tudo com rapidez, para que se
concretizasse. Uma sensação, apenas. O resto, contaram-me. Que usei um banco
alto, que levei a boneca, que atravessei a estrada, como isso perturbou o quotidiano
ordenado da minha avó que comigo nunca se zangava. Os piqueniques no pomar das
macieiras. Maçãs riscadas e ácidas que ainda agora saboreio. O lilás do
granzoal. Os caracóis sabiamente recolhidos nos cardos. As corridas de bicicleta
e saltos na rampa de terra. O meu amigo que caiu no rio seco repleto de silvas.
Ter de ir chamar os pais e desvelar que íamos pelos caminhos proibidos. A senhora
que contava das almas penadas que habitavam o castelo. Todas belas mulheres
vestidas de branco. O regresso a casa a pedalar em alta velocidade, sob o medo
da noite e das mulheres de branco vindas do castelo. Os longos passeios às
casas velhas, antigos solares, onde os fantasmas saiam pelas janelas sem
vidros. O loureiro na curva sombria. Os dias de praia, de anémonas, estrelas e
ouriços marinhos, caranguejos apressados. E os polvos a espreitarem nas rochas
em manhãs de maré baixa. Fauna há muito desaparecida. As horas intermináveis de
tapetes de conchas na areia, como os embrechados dos monges (sabíamos lá o que
isso era). Tempo de culto. Os azuis e os verdes volúveis da baía abraçada pelas
rochas contemplativas da serra. Memórias que vão e vêm como as ondas suaves que
na praia se desmancham.
Por fim, os passeios lentos com o avô nos seus últimos passos, como quem
não quer alcançar a hora derradeira. E não queríamos. No quarto da avó em
conversas de fim de tarde. O último telefonema a uma prima a estenderem-se por
tempos antigos, de uma Lisboa que só conheço dos livros e destas frases cristalizadas.
A sala silenciosa no burburinho de antigos rituais que deslizam no
cheiro a cera e a cânfora. O armário do quarto atento e severo na sua
verticalidade austera. Os bordados dos ócios extintos namorados por traças
douradas de pó. O chapéu de palha há muito esquecido no gancho da porta, sem
passeios de fim de tarde. A araucária de braços estendidos em gesto de
catedral, onde o culto se consagra.
Sesimbra, 15 de agosto de 2015
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