« - Bem sei que podem perseguir-me, arrancar-me os olhos, torcer-me as orelhas, transformar-me em lagarto, em morcego, em aranha, em lacrau! Mas juro que não hei-de ser infeliz PORQUE NÃO QUERO.» [Aventuras de João Sem Medo - Panfleto Mágico em forma de Romance, José Gomes Ferreira] «Fica a saber claramente:não trocaria a minha desgraça pela tua servidão.» [Fala de Prometeu, em Prometeu Agrilhoado, Ésquilo]
quinta-feira, 14 de abril de 2016
sábado, 15 de agosto de 2015
No quarto dos meus avós maternos, com quem passei férias desde a minha
mais remota existência. Fui feita aqui, nesta casa, e baptizada no castelo de Sesimbra.
Esta casa, pequenos objectos imutáveis, as ruas, vestígios dos campos de
outrora onde ainda não edificaram casas, a paisagem a serra e o mar. Tudo isto
sedimenta anos de recordações. As memórias, tantas, explorações infindáveis de episódios
que se sucedem, engrenagens incessantes de ideias, sensações tão distantes. Com
cerca de três anos saltei a janela da sala para ir brincar com a menina da casa
em frente. Lembro-me da ansiedade de fazer tudo com rapidez, para que se
concretizasse. Uma sensação, apenas. O resto, contaram-me. Que usei um banco
alto, que levei a boneca, que atravessei a estrada, como isso perturbou o quotidiano
ordenado da minha avó que comigo nunca se zangava. Os piqueniques no pomar das
macieiras. Maçãs riscadas e ácidas que ainda agora saboreio. O lilás do
granzoal. Os caracóis sabiamente recolhidos nos cardos. As corridas de bicicleta
e saltos na rampa de terra. O meu amigo que caiu no rio seco repleto de silvas.
Ter de ir chamar os pais e desvelar que íamos pelos caminhos proibidos. A senhora
que contava das almas penadas que habitavam o castelo. Todas belas mulheres
vestidas de branco. O regresso a casa a pedalar em alta velocidade, sob o medo
da noite e das mulheres de branco vindas do castelo. Os longos passeios às
casas velhas, antigos solares, onde os fantasmas saiam pelas janelas sem
vidros. O loureiro na curva sombria. Os dias de praia, de anémonas, estrelas e
ouriços marinhos, caranguejos apressados. E os polvos a espreitarem nas rochas
em manhãs de maré baixa. Fauna há muito desaparecida. As horas intermináveis de
tapetes de conchas na areia, como os embrechados dos monges (sabíamos lá o que
isso era). Tempo de culto. Os azuis e os verdes volúveis da baía abraçada pelas
rochas contemplativas da serra. Memórias que vão e vêm como as ondas suaves que
na praia se desmancham.
Por fim, os passeios lentos com o avô nos seus últimos passos, como quem
não quer alcançar a hora derradeira. E não queríamos. No quarto da avó em
conversas de fim de tarde. O último telefonema a uma prima a estenderem-se por
tempos antigos, de uma Lisboa que só conheço dos livros e destas frases cristalizadas.
A sala silenciosa no burburinho de antigos rituais que deslizam no
cheiro a cera e a cânfora. O armário do quarto atento e severo na sua
verticalidade austera. Os bordados dos ócios extintos namorados por traças
douradas de pó. O chapéu de palha há muito esquecido no gancho da porta, sem
passeios de fim de tarde. A araucária de braços estendidos em gesto de
catedral, onde o culto se consagra.
Sesimbra, 15 de agosto de 2015
quarta-feira, 15 de abril de 2015
No tempo de um café
No tempo de um café,
a tempestade.
A cor desta cidade
quando chove
não é a do brilho da chuva
mas do tempo
que tolhe.
Pranto, ódio, irritação
Trrrrransito…
Berra a escuridão
E o brilho da chuva
derramada
Cidade mortificada
turva
Em lama pelo chão.
O instante abreviado de um café…
morno.
Lisboa, 15 de Abril de 2015
segunda-feira, 23 de março de 2015
É no amor que nascem as palavras
É por amor que rompes o silêncio
É no amor que escreves o que rasgas
É por amor que gritas e te esmagas
É no amor que o sonho te supera
É o amor a tua longa espera
É o amor os dias solitários
Pelo silêncio dissipas as palavras
É por amor que gritas os teus sonhos
É nos teus sonhos que soltas os poemas
É nos poemas que esbanjas os sentidos
É sem sentido que amas as palavras
É o amor que sonhas e te esmaga
É com palavras que dizes o silêncio
É o silêncio que encobre o que te amarga
É o que gritas que amarga e te supera
É no amor que o sonho desespera
É no silêncio na ânsia e na fome
Onde o amor definha e se consome.
Raquel, 23/03/2015
segunda-feira, 16 de março de 2015
domingo, 18 de janeiro de 2015
A flor sagrada é uma
campainha que toca em silêncio
Quando eu era criança, Massamá era um Lugar composto por um conjunto de
pequenas habitações de construção chã, em volta do qual se estendiam casais e
quintas com terrenos a perder de vista até Tercena, Cacém ou Queluz.
Havia algumas crianças com as quais brincava, mas a maior parte do meu
tempo era passado na companhia dos cães – a Violeta, uma perdigueira
extremamente meiga, e o King, um pastor alemão que me transportava no seu lombo.
Com eles explorava estes campos que, na Primavera, se cobriam de flores
silvestres tingindo a paisagem de roxo, amarelo e vermelho. Talvez seja por
isso que estas se mantiveram as minhas cores preferidas até hoje. Havia dezenas
de espécies de pássaros, insectos, coelhos, algumas cobras e ouriços caixeiros,
e toda esta fauna autóctone habitava o meu quotidiano de passeios intermináveis
pelos campos - hoje ruas de alcatrão que formam uma teia entre os prédios e
algumas construções antigas que perduraram e que é preciso descobrir.
Nos meus passeios primaveris, entretinha-me
a descobrir flores secretas, que eram aquelas que existiam em menos quantidade.
Eram pequenas e muito belas, talvez por serem raras. Entre elas contavam-se as campainhas,
com a forma de uma campânula de molde oblongo, que escondia um “pêndulo”
amarelo. Eram carnudas, castanhas, quase roxas (ou cor de beringela), e
formavam umas pequenas riscas no topo que se tornavam definidas junto ao caule,
se as observávamos com atenção. Estas eram as minhas eleitas, e nunca as colhia
por serem, para mim, sagradas; tão diferentes de qualquer outra flor, não possuíam
folhas nem pétalas, nem se prestavam a serem colocadas numa jarra. Brotavam
discretas e escondidas no meio de ervas e outras plantas que floriam.
Descobri-las exigia persistência e dedicação à tarefa de conviver com os
segredos da natureza. Descobri-las era a resposta dos deuses à minha curiosidade
pelo mundo.
Há dias, no meu percurso pelo jardim, encontrei uma dessas campainhas, esgueirada
para a beira do caminho, como quem grita: “Estou aqui! Lembras-te?”. E fiquei a
pensar de que quereriam os deuses que me recordasse nestes dias frios e sem luz.
De alguma dessas coisas maiores que fazem parte da eternidade, com que
convivemos nos dias da infância. De alguma Primavera, dessas que acenam em dias
agrestes de Inverno.
Hoje resolvi ir colhê-la com uma foto, mas já só me foi concedida metade
da flor, já quebrada. Deitada no húmus.
Massamá, 18 de Janeiro de 2015
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