terça-feira, 9 de novembro de 2010

Andam as pessoas tristes na rua triste

E chuvosa

Enxovalhada, charco de vida arrastada

Andam feias e penduricalhas

Penduradas migalhas na rua triste

Paralelas vão

Rente aos prédios de betão

Perpendiculares

Aos passeios parecidos com dentaduras

Que riem escancaradas

Que riem às gargalhadas

- Ignaras –

Onde rumos pré-traçados nunca se desviam

(Triste geometria em linhas rectas

Que se entre-intersectam)

Vida pra cá e pra lá

Que os prédios espartilham

Sem fôlego, sem ar, sem sangue

- Sem Amor –

Penduricalhas as pessoas tristes

Penduradas, migalhas

Lá vão pela manhã

Com a vida num saco do Dia

Onde se amparam para seguirem

No charco chapinham...


Raquel

9/11/2010

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cidade,

Nodosa alma

Latejam artérias

O dia, a hora...

Perecem segundos

Enquanto a chuva demora

Cadência calma

No labirinto nodosa alma

O vaivém que não abranda

E a chuva demora.


Entre paredes os caminhos seguem

Segmentos de vida

Inacabada

Ilusão de estrada

Onde os passos caem

Inconstante forma

Que resvala

Um tratado, uma lei

Uma norma.

Raquel

8/11/2010

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O ESPELHO

Estamos todos suspensos numa mola de ar

Que o vento leva e traz

E a acalmia estanca

A terra emana o seu odor de cio

- O húmus que se altera em desafio.


Os rios em pranto

Sulcam montanhas

E no vale se aplacam

Onde a terra os abraça.


Suspensos

Numa mola de ar

Vemo-nos em gestos e rostos corrompidos

Reflexos de água pura

Nesse ventre

Outros seres procriam.


Raquel C.

20/10/10

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dedicatória

A Morte é o mais amplo de todos os mistérios.

Em primeiro a agonia da impossibilidade de comunicar.

Depois o folhear de recordações.

Por último, alojamos os nossos entes queridos num mesmo lugar (do nosso afecto) de onde nos vêem e ouvem, e para eles, de tempos a tempos, agimos e mostramos com carinho aquilo que gostaríamos que eles soubessem de nós. Pensamos: “isto é para ti”, crentes de que eles ficarão felizes.

E nessa vivência do mundo dos nossos mortos, cada vez mais povoado, vamo-nos acostumando à sua proximidade.

Raquel

14/10/2010

terça-feira, 1 de junho de 2010

Arrastam as sombras pelos muros da cidade
Já desfeitos
O pó
Passos espezinhados
Vaivém
Ruído

Descascados da espera
Interesses corrompidos

Os muros da cidade estão despidos
Castigados
Rasgados de verdades retraídas

São muros de palácios de tascas de jardins
Todos oblíquos
Paisagens cubistas em manhãs de penumbra

São as ruas que descem ao rio
Sequiosas de luz

Mas o rio é uma silhueta cerrada
Calabouço

A violência por detrás das sombras
A noite de capote avança

A noite de capote avança
E tu sabes
Não te escondes, gritas, resvalas
Com as entranhas diluídas nos escoadouros
Até ao último grito
Até ao último som
O eco da última palavra.

1/06/2010
Rk

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A electricidade corre nas veias das casas.
As casas de hoje estão cheias de veias rente aos muros e sob os móveis, como que num corpo que respira.
As casas têm vida electrizada e tudo se acende e pisca. Luzinhas minúsculas verdes, vermelhas e amarelas dizem que as casas estão vivas e dentro delas movem-se seres que acendem e apagam, ligam e desligam, aquecem e arrefecem aparelhos que são o pulsar da vida moderna.
Na vida moderna as casas parecem óvnis, aqueles dos filmes da infância da ficção científica que parecia tão longe que nunca a viveríamos.
As casas de hoje são a ficção científica da nossa infância. As casas de hoje são adultas e têm veias cheias de electricidade. E as crianças de hoje, sem as veias que correm pelas casas, julgariam as salas mudas.
31/05/2010
Rk
Uma fotografia regista aquela fracção de segundo que fica imediatamente colada ao passado.
E desse passado fica-nos a memória, incompleta mas viva, das sensações indeléveis que o momento nos doou: os odores, as paixões, as cores, as palavras, um sorriso, um toque.
E essa memória vai sendo constantemente regenerada pela capacidade que temos de criar; de tornarmos os bons momentos ainda melhores, e os maus em horríveis, ou esquecer.
A fotografia cristaliza a imagem. A memória desenvolve-a, recria, nutre-a.
E de um tópico, que é a imagem, devolvemo-nos a história.
Ando à procura de uma memória que tenho na memória. Ando à procura de uma fotografia que sonhei.
31/05/2010
Rk

Se

E se
Uma sombra vaga mingua
O fim de um lago em abismo
Uma serra tão antiga se resvala

Se
De um raio de Sol se queda água
De um Verão pleno neva a alma
De um Não te asseveras

E
Um Adeus regressa
De um Sorriso a raiva
Do Amor a praga

E se
Um dia não te Perdes
Não te Sentes
Não Vagueias

E te Descobres

31/05/2010
Rk

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O silêncio do mar

Que encanto
Quando convivíamos com sereias e tritões
E os nossos mares tinham as partidas
Que eles guardavam

E os marinheiros neles confessavam
E partiam

Quando os pescadores atentos
Escondiam o pescado
Que, por malandrice, os homens-marinhos lhe roubavam

Quando o camponês nas infindáveis horas da labuta
A estancava, não pelo descanso desejado, mas pelo cantar doce da sereia

E no pomar fecundo, pela madrugada, já se lamentava
Pela falta dos frutos já prontos prá colheita
Que jovens tritões à beira-mar
Saboreavam

Sabia-se muito bem que dormiam sobre as rochas
E brincavam na areia durante o amanhecer

E que alguns se acomodaram à vida dos homens
Outros pereceram no mar do silêncio.

E a sereia nunca mais cantou.

Raquel
27/05/10

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Dedicatória

«Vinde Ilusões! Da vida, na manhã,
Como amava fixar vosso inconstante afã!
É essa uma vaidade que ainda me interessa.
Aproximem-se!... Bem; tudo se anima e apressa
Por cima da neblina e num mais vasto mundo,
Meu coração, mais novo, aspira mais depressa
O sopro da magia em torno a vós, profundo.

Dos belos dias idos eu distingo as imagens,
E muita sombra querida vem para mim, dos céus;
Fogo reanimado atravessando idades,
O amor e a amizade repovoam lugares.
Mas o desgosto segue-os; nas nossas casas tristes,
Nunca a alegria esteve a não ser por metades...
Vêm lembrar aqueles que nas amáveis horas
Levados pela morte deixaram bons amigos.
Aquela voz que amavam ressoa com ternura,
Mas não pode chegar aos mortos que procura;
Eu perdi da amizade a atenção benévola,
E o meu primeiro orgulho, e os primeiros acordes!
Minhas canções só falam a ignotas multidões,
Mas os aplausos são vazios de intenções,
E se em mim a alegria por vezes foi sentida,
Parecia vaguear na terra destruída.
Um desejo esquecido, que quer voltar a ser,
Vem, numa longa paz, minha alma comover;
Mas, inarticulado, o meu canto parece
Ser o de um alaúde onde a brisa estremece.
Sinto-me emocionado: não de lágrimas novas,
A noite da minha alma tornou-se menos triste;
Dos meus dias de outrora reviveram as trovas,
E aquilo que não é, para mim ainda existe.»
Fausto, Goethe.

quarta-feira, 3 de março de 2010

«E [Julião] falou então com amargura nas suas preocupações. –
Havia uma semana que se abrira concurso para uma cadeira de substituto na Escola, e preparava-se para ele. (...) Mas a certeza da sua superioridade não o tranquilizava – porque enfim em Portugal, não é verdade?, nestas questões a ciência, o estudo, o talento são uma história, o principal são os padrinhos! Ele não os tinha – e o seu concorrente, um sensaborão, era sobrinho de um director-geral, tinha parentes na câmara, era um colosso!»

O Primo Bazílio de Eça de Queiroz, 23ª Ed., Edição «Livros do Brasil», Lisboa, pp. 193, 194.