sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

VIII – ENCONTRO

No rosto do outro um sorriso como se tivesse uma máscara de argila seca na cara

Estava a ler o jornal e um fulano-tal cumprimenta-o

A conversa de ocasião (igual a todas as outras) começa a jorrar até ao nº do outro piscar no visor onde se lê «senha» e «mesa»

E os números piscam vermelhos e electrónicos por baixo

Assim sabemos que chegou a nossa vez

Todos temos a nossa vez, julgo eu

O fulano-tal fala um monólogo a que o outro acena com a cabeça

Com os olhos pregados nos mosaicos cinzentos salpicados de preto e branco

Que forram o chão

O fulano-tal tem uma imensa desenvoltura a articular conversa-de-ocasião

O outro sorri como se a máscara de argila se tivesse quebrado em lascas

O seu número piscou vermelho.

VI

Aqui

Em espera na Segurança Social

As pessoas aproveitam a conversa de ocasião que tendem como a massa de fazer rissóis

Para queimar o tempo de uma manhã inteira.

O ardina

(já me esquecia que se extinguiram os ardinas)

A papelaria lá de baixo vende jornais e revistas de queimar o tempo de uma manhã inteira

As escadas rolantes sobem e descem corpos atónitos

Impacientes

Outros espalmam-se nas cadeiras a tempo inteiro

Na sua ocupação de desemprego

Os números passam vermelhos

Electrónicos

Demorados

Todos temos um número

Aqui e em todo o lado.

III - ANGÚSTIA

Esmagada

Respiração intercalada de oxigénio sujo

E nicotina

No peito um enorme enchimento para almofadas

Sintético (e não biodegradável)

O estômago espalmado

Como aspirado para obter o vácuo

Nas pernas um tremor, como no rosto

Nos lábios, nas pálpebras, no olhar.

(Deve ter sido assim que nasceu a moda oitocentista do peito-de-rola).

II

Andamos às cambalhotas.

Quando tentamos endireitar-nos,

Aquela vertigem que escorre como a água de um balde.

I

Estamos aqui por uma questão de minutos

Em segundos dormentes

Entre o sol nascente e o ocaso

Perene

Apartados da história e da memória

Subterrâneos

Pendentes de um acaso.


Servos clandestinos de um deus inconstante

Os segundos caem irrecuperáveis

Em algarismos

Corremos a passos electrónicos

Pelas veias viciadas das cidades

Rumos centrifugados

Mastigados, indigestos

Ascendemos, sim

Pelas escadas rolantes da estação de Metro

Subterrâneos, opacos

Electrónicos, mecânicos, sós.

Raquel, 7/01/2011


quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Era uma vez uma janela

De uma casa à beira rio

Toda preta e aveludada

De luto como uma carocha

Não era casa era uma rocha


Era uma vez uma guitarrinha

Que todo o dia cantava

A história da carochinha

Toda preta e aveludada


Um chorinho morno bailava

A formiguinha embriagada

Que o carreiro abandonara

Numa manhã de trovoada

Entrara pela janela

Porque a porta estava trancada

Da casa preta e aveludada

Que era uma gruta encantada


E junto da guitarrinha

Dança, dança formiguinha

Que o carreiro abandonara


Era uma vez uma casinha

Toda preta e aveludada

Dali espreita uma janela

Com portadas escancaradas

Para o alto da colina

Onde acena La Fontaine

À formiga bailadeira

Que da guitarra se abeira

Como quem canta uma fábula:

«A formiga no carreiro

Vinha em sentido contrário

Caiu ao Tejo, caiu ao Tejo...»