sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O PODER

   Por vezes recordo um episódio que se passou comigo há uns anos atrás, quando os meus filhos estudavam num colégio, onde estudavam filhos de pessoas comuns, mas também os de pessoas com Poder – políticos e outros traficantes da miséria humana que pude observar no seu inchaço infeccioso, germens de nação doente.
   Esse colégio está situado numa quinta de Chelas, estrangulado por quilómetros de bairros de infortúnio e delinquência que vacilava em redor dos muros da antiga quinta.
   Numa manhã comum, em que fui deixar os meus filhos, conduzia pela avenida que desce uma das encostas da colina, quando um desses carros do Podeerrrrr me ultrapassou combativo – a deixar ressaltar a soberba que, de dentro, emanava. Ultrapassou-me a mim e ao carro “tuning” que seguia diante do meu.
   O semáforo luziu vermelho e estancou a fúria do “ultrapassante” por imposição da circulação perpendicular da outra via. Do carro da frente saltaram quatro desses filhos de Chelas, da miséria, da incúria humana... E aquele diamante da rodovia foi coberto de escarros, de pontapés, de murros, de injúrias, e o resto não vi porque o semáforo iluminou-se de verde e contornei aquela luta de poderes. De quem é o Poder?

Raquel

25/10/2013
L’ÉTANG

J’aurais envie de replonger dans cette branche de mer perdue
Mais tous mes songes furent suspendus
Dans un instant si pénible
Que je défile, invisible
Entre la mémoire et l’inconnu

Ce long couloir d’alabastre
D’une montagne éventrée
Un souffle, un astre
La liberté

Raquel

18 octobre 2013

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Parece-me que vim desaguar a um poço iniciático
Eu sou um rio que se dilui no mar


3 de Outubro de 2013

sexta-feira, 19 de abril de 2013


Estação Terminal

O som dos ferros tritura os segundos da paisagem. A urbe engolida pelo tempo. O subúrbio traz a indiferença das horas. Fica para trás. Atrás de mim. Recua. Recua no tempo ilimitado. O subúrbio é um poço sem eco. Vai até Lisboa. Entre Sintra e Lisboa um poço sem eco. Um espelho baço. Viagem de aço.

Trago da cidade o bater dos ferros. O guincho metálico da adolescência. O som metálico entrecortado pela voz gravada de mulher. No comboio. Qual mulher? - «Estação terminal». Viagem para a eternidade. Chego a Sintra. - «Estação terminal». Terminal é a evasão. O ruído o betão o negrume as sombras sobrepostas das estradas a escola onde não fui hoje. Tudo ficou triturado ao som dos ferros. Esta é a minha música. Sem melodia. Cadência percutida. Este é o comboio que me leva a Sintra.

Estado terminal – subo a serra e o cheiro a terra e musgo devolve-me o pensamento.
Este silêncio tem mais palavras do que a tua voz.

Sintra tem o olhar estendido entre a serra e o mar. O arvoredo engole-me os passos. Subo, subo, fujo. De mim.

Do outro lado estende-se o vasto subúrbio. Não o vejo. Adivinho-o para além da névoa. Que me alberga. Ainda oiço o som dos ferros. O comboio e a estação terminal. Esta-ção. Ter-mi-nal.

Subo a serra como quem levita e se desprende. Subo até ao ponto mais alto. Onde existe um resto de convento. Na embriaguez do húmus. Numa náusea avisto o mar. O vasto mar... um extenso monólogo.

O mar não é apenas o lago que vejo ao longe. É onde me revejo no espelho dos pensamentos. Onde mergulho e o meu corpo se dissolve.

Nesta gradação de verdes consigo pressentir o teu amor por mim. Não que mo dissesses. Não que te conheça. Mas os meus passos sobre o empedrado escorregadio, polido pelos passos do tempo, o som da água que escorre nas veias da serra e que as fontes choram. A terra que anuncia o teu odor. Tudo me avisa o teu amor por mim. Como numa pintura. Justamente naquela janela onde vejo a tua eterna espera. Aquela janela em guilhotina tornada a sul onde se suicidam pensamentos desde as horas extintas do passado. É a janela onde me apaixono. Decidi assim, do outro lado da estrada, há cerca de um mês e meio, ou pouco mais. Chovia e a janela fechada. Esbocei-te nas gotas da chuva fria.

Eu não estou à tua espera. Não trago relógio nem sei ler o sol. Hoje está sol depois do bosque cerrado. Já me esquecia de te avisar, a ti, que esperas na obscuridade. Eu não sei quem és na solidão cumprida. Não mais do que um esboço feito de chuva. Uma janela fechada, de guilhotina. Deste solar mudo.

Quantos servos de vidas sofridas para erguer estes palácios? Estes bosques, jardins esculpidos na serra. Para ser teu o prazer do ócio. Tu, sentada nesse demorado retrato, que espreitas por uma moldura entalhada. Sólida. Dourada. Que te entregas nesse olhar impreciso que atravessa os tempos.

Sinto as horas lânguidas dos espectros. O folhear dos livros dos poetas. E os livros sem letras dos analfabetos. Dos que esculpiram a eternidade na serra. Leio no silêncio dos teus lábios o que não posso descrever. Sintra é a confidência do mais profundo desejo, da eternidade imaterial do mistério. Onde a Natureza e o Homem se abraçam num beijo imenso.  É luxúria!, neste brotar constante de arte e húmus.

Regresso ao Cacém. Aparece o João. Não Foste às aulas? Estive a fazer um trabalho. O que é que estás a ouvir? Gabriel o Pensador. «Eu quero viver numa favela. Eu quero viver numa favela. Eu quero viver numa favela...». Esta cidade não tem melodia, percute-se no barulho dos ferros. O «amor» entra no dicionário e sai no teste de Português. Como na viagem de comboio. Viagem de aço. O amor é a estação terminal.


Raquel Coelho