sexta-feira, 23 de maio de 2008

Aos amigos

Como a rocha se forma secreta no interior da terra,
Centenares de séculos
Simulando um adormecimento profundo
A construir a sua sólida existência,
Assim se revela
Silencioso, perene, discretamente belo,
Um amigo.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Lumiar

Lumiar

Sob o ferro do viaduto imenso
Cimento armado
Carros sonoros
Fumos cinzentos
Estridente impaciência.
Cresceram prédios
onde trezentas famílias se ignoram
cuspidas matinalmente ao alcatrão nocturno,
em massa.
Sob o viaduto imenso
Surge de repente
Iluminado
Um velho muro de quinta centenária
Onde uma jovem hera
Reverdece amena
Lembrando o lugar de recreio
Que ali houvera.
27/09/07, Raquel

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Setembro em Alvalade


Autobiografia conjunta

Autobiografia conjunta ou conjunto sem biografia

Histórias aos quadradinhos. Poder-se-ia dizer da primeira fase do encontro entre Sara Franco e Raquel Coelho (ou de outra maneira qualquer) – aquela a que chamam adolescência – enredos breves, imagem, movimento e algumas palavras, para dizer muito. É o que perdura na memória para quem talvez esteja a passar à fase do romance. Agora com tantas histórias para contar, até ao quase inevitável de juntarem as formas de expressão que melhor dominam – para Sara a imagem e Raquel com o texto – ou apenas pelo prazer de fazer. Foi assim que nasceu o projecto conjunto de dizerem em banda desenhada, poesia ilustrada e outros venenos, como o que aqui apresentam, a que poderemos chamar, se quiserem, poesia visual.

Raquel Coelho30/01/08

AMAR


Circle of Love


A Antiviagem

A Antiviagem
ou o tempo estagnado (a um amigo... ou a qualquer escriturário devidamente empacotado)

Vem!
Deixa o teu sonho
Emoldurado nessa parede suja
Não te deixes devorar
Pelos vermes
Que anseiam a tua carne
Parado aí putrefacto...
Vem!
Não deixes cair os teus dias
De pálpebras pendentes
Não deixes ficar o baço dos teus olhos
Sobre o vai-vem rotinado
Dos dias a passar
Páginas brancas
Desfolhadas
Folheadas entre dedos em torno de nada...
Vem!
Não cuspas assim
pró chão
Que o som do cuspo batendo na calçada
É a música
Muda da cidade embrutecida.
Sempre os mesmos escarros
Vazios de verdade...
Quando cuspires cospe com raiva!
Sempre a mesma resignação
Os graffiti mudos desse muro
Onde passas os dias a ver passar o mundo...
Deserto imundo...
Pega no teu sonho e foge
Há sempre um sonho
Mesmo que esmagado
Foge desse muro
Como um dito marginal que roubou
O sonho alheio
Mas foge
Mesmo
Como quem rouba...
Prometeu roubou aos deuses... o fogo...
Se preferes ser marginal
Ou mesmo que não prefiras nada
Vem!

Acabou o teu tempo
Já não podes levantar o brilho desse olhar
Sorvido pelos vermes
As mão desossadas
Deixam passar os momentos que seriam teus
As pálpebras roídas
Deixam ver na profundidade
O outrora brilho do teu olhar
Que os vermes te sorveram.
Essa ironia que vendias
Encostado a esse muro
Onde a vida embalada
Pela música dos escarros que foste cuspindo
Serve-te de mortalha aí
Onde as tuas ratazanas de companhia
Se ocuparão do enterro, do velório
E da missa do sétimo dia.

«É certo que eu não pensava que, consumido por tais sofrimentos e agrilhoado a estes altos rochedos, me caberia em sorte este pico ermo e solitário.»

19/06/2002

Comentário ao nº0 da Big Ode

13.2.07
Big Ode #0



A Big Ode é uma revista recente, cujo número 0 saiu em Outubro passado. Dado tratar-se de uma edição trimestral, não sei se, entretanto, saiu mais algum número. Como só muito recentemente me chegou às mãos este tomo inaugural, dou agora conta da minha leitura. No editorial, Rodrigo Miragaia (n. 1969) – formação em Pintura e Realização Plástica – apresenta a Big Ode como uma revista que procura «ideias que ficam para trás, sem rumo, sem desenvolvimento». É uma forma interessante de colocar o problema das vanguardas, essas antecipações do futuro que morrem sempre no momento da sua estruturação, quando alguém as tenta cristalizar em conceitos definitivos e definições conceptuais. Revistas como a Big Ode assumem, de facto, a função valiosa da experimentação que consiste na ousadia do passo à frente, na tomada de posição dianteira, quase em registo de brainstorming, no campo de batalha das ideias. Daí me parecer feliz a opção, expressa no editorial, por uma pesquisa anterior ao resultado, por um esboço antes da construção. Do género, em terras lusas, não se vê muito. Penso na Bíblia, da qual a Big Ode se distingue pelo formato maior e pela opção bilingue. Não sei se devido ao tema deste número - a poesia -, mas, em termos literários, a tendência é, claramente, para o experimental, para o chamado poema visual e concreto. Nesse sentido, a Bíblia, que já vai com uns anitos, possui uma abrangência que a Big Ode poderá vir a confirmar ou a contrariar nos próximos números. A ver vamos. Entre as duas revistas conflui, no entanto, a opção por um design que procura dialogar com o texto colocando-se ao mesmo nível deste. A leitura pode, por vezes, ser dificultada pelo excesso de imagens e pela disposição dos textos na página, embora não deixe de ser um regalo para à vista folhear páginas onde se encontra um pouco de tudo o que não se vislumbra em mais lado algum. De resto, a esmagadora maioria dos colaboradores provêm das áreas do Design e das Artes Plásticas. Além dos trabalhos do editor Rodrigo Miragaia, encontramos neste número uma entrevista informal a Tiago Gomes, poeta e editor da supracitada Bíblia, acompanhada de alguns poemas do autor de Viola-me Eléctrica. Carla Carbone apresenta com brevidade o percurso de Salette Tavares (1922-1994), um dos nomes consagrados da poesia experimental portuguesa, enriquecendo o texto com uma antologia de poemas da autora visada que inclui, entre outros, representações de Brincadeiras (1966) e Parlapatisse (1965). Há, ainda, trabalhos de Gonçalo Cabaça, Fernando Aguiar, Maria João Lopes Fernandes, António Salvador e Elsa Lima. A revista termina com breves notas biográficas acerca de alguns (?) colaboradores. Deixo aqui um pequeno poema assinado por Raquel Coelho, que na edição original aparece ilustrado por Pedro Morgado:
FRACÇÃO
Trechos desarreigados do seu contexto original

Amanhece de tal forma que a luz cega.
Logo hoje o sol…
onde estão os óculos escuros?
Não vejo nada estou desfigurada
No espelho vejo as voltas da valsa
Vai, vem, roda, roda
E volta a embriaguez.
Vómito, vómito e suor
E as notas desencontradas do free-jazz e suor a bílis
Fígado e free-jazz
in http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/