sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Carta de Natal

Caro amigo,
A rua desce sombria
E rápida, mas a subida dura
É soalheira.
O franco azul
Do céu cheira a orvalho e maresia
(mesmo rasgado pelo avião a jacto)
Nele não se desenham
Nem estrelas nem o luar
Mas na colina a erva
Cintila.
Já amanheceu há muito. O ruído
Rompeu a aurora rotineira
Desta sexta-feira (vésperas
De Natal
De 2016). Estamos em 2016,
Caro amigo, e as pessoas por aqui ainda
Festejam.
Passou
Tanto tempo
Há, como sempre, rostos
Alegres e tristes
Pensativos e ausentes
Atentos, dispersos
Vazios desrostos
Desgostos
Que descem a rua sombria ou sobem
Num esforço de sol quente.
É assim
Há muito tempo, caro amigo,
Os anos passaram e nada mudou.
Os pássaros chilreiam enquanto estrondeia
A guerra
Do outro lado do mundo.
O lado distante que não vemos.
No mundo há sempre dois lados, caro amigo.
O tempo passa e
Há sempre o outro lado do mundo. Aqui
Festeja-se o Natal porque
Está na ordem da vida festejar.
Também os gatos
Lá fora
Festejam o sol de corpo
Estendido como tapetes
Festejam a morte
Das lagartixas e dos ratos. Há sempre
O outro lado da vida, caro amigo.
Até os gatos sabem disso
Quando ronronam.
Há muito tempo que assim acontece. Os homens festejam
A guerra com tiros de fogo e aguardente velha.
(Os que estavam mais perto da morte e sobraram
Bebem bagaço). Passam os séculos
Com o mesmo cheiro a enxofre e aguardente. Sempre
Foi assim, caro amigo. Aqui é Natal e os homens
Festejam. O ocaso
Eclodiu em tonalidades lentas: azuis,
Vermelhos, roxos, laranja, verdes, rosa
Até ao mais profundo
Azul da noite estrelada. Agora as sombras
Desafiam os cães
(como sempre aconteceu).
O chilreio ensurdeceu nas copas das árvores. Ao longe
Do outro lado a guerra pranteia.
A rua desce e sobe
Nocturna e fria. De que nos servem no Inverno
As copas das árvores sombrias?
O pinheiro, por exemplo, torna a noite de Inverno
Mais escura
Como a morte.
Mas o seu perfume permanece aqui em noites mornas
De Verão. (Há sempre o outro lado, amigo)
Outras de folha caduca
Gritam viuvez
De braços agudos pela lua adentro
Feiticeiras mortas famintas
 E não é ódio, caro amigo, é medo
Medo do vento e da geada
Medo da guerra, do abandono
Do sangue esquecido que corre pela estada. As folhas partem
Errantes sem rumo sem cor
O perfume verde do pinheiro
Ilumina-se
É Natal.

Raquel Coelho
23/12/16








sexta-feira, 6 de maio de 2016

O meu texto para a exposição da Sara Franco e do João Fonte Santa

na sombra do caos derr-ama a memória. armas de aço. armas a morte. ar, mas sufocar. arte. tu ar. toada. és tu. lindo o cartaz. estrelas ca-dentes d'enfeitar.d'enganar. de-rra-me no teu ventre sen-su-alizado suado nesta que-da sem fim. p'ra mim. derrama-me. ama-me assim. explo-de de explosão. com-some-te. some-te. fome.



quarta-feira, 4 de maio de 2016

Nós, portugueses,
herdeiros de barcos naufragados
colhemos do mar a morte, a vida e os poetas
o medo que nos tolhe
e a luz que nos liberta.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Fénix

É assim que nós, de cada vez que morre alguém que nos é querido, vamos perecendo aos poucos. Atónitos, ainda, diante da foice implacável...
Chegados ao estado das folhas do fim do Outono, um frágil rendilhado de nervuras, quase húmus, ali ficamos, indeléveis, no silêncio dos tempos.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Há pessoas que vivem como larvas, de carácter tão rasteiro, que nem para um voo de varejeira conseguem ter asas.