sábado, 24 de dezembro de 2011

Resvalam navios oblíquos
Em despedidas lentas
Murmúrios de cascos rompem as águas
Densas
A paisagem baloiça em agonia
E a cidade despede-se de janelas fechadas.
Na outra banda
As casas diminutas tropeçam nos “outdoors” publicitários
(Em inglês importado por avultadas quantias)
O mar avança como no cinema
O tempo solta-se
Na distância irreversível da saudade
O mar tumular lamenta-se
Do infinito.
Num quebranto de ondas resignadas
Os corpos repousam em tumbas magníficas
Erigidas de dor e pranto
O mausoléu
Por detrás da última serra
Entoa o lamento secular dos homens.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Tenho os olhos cheios de letras

Como grãos de areia da praia com vento

Tantas palavras como sedimentos

Tantas ideias que compõem rochas

Tantos castelos, aldeias e templos

Que o vento consome

Tornados segredo.

1/06/2011

quarta-feira, 6 de abril de 2011

POEMA INDIZÍVEL

Este é o poema indizível
Na garganta esgaçada
Da raiva contida
Da acção amarrada
Das ideias perdidas
Vozes censuradas
Das palavras escritas
Em folhas queimadas
Das cinzas esquecidas
Em alcatrão fervente
Da mão endurecida
Presa na corrente
Do ventre esgotado
Dos filhos perdidos
Do rosto cansado
De olhares aturdidos
Esforços desmentidos
Zelos mutilados
Vontade invisível
É tudo indizível.
Raquel
31 de Março de 2011

TRAGO

Trago na mão caneta e papel

Para escrever as palavras que não hão-de ser ditas


Trago na mente as ideias rasgadas

Nos voos nocturnos de sonhos remotos


Trago nas mãos o Nada

Do trabalho arrastado dos dias de Inverno

E os espasmos das horas enganadas


Trago os caminhos na memória esquecida

Em que vi das paisagens o negrume e o ódio


Trago os silêncios amargos

Das conversas nunca encetadas


Trago o Não dos olhares resignados

Dos que perduram


E o luto dos livros queimados

Em que me amortalham.


Trago um gole de vinho acre.


Do solo crestado e estéril

Sem fruto, sem chão, sem vida.


Raquel

31 de Março de 2011

quarta-feira, 23 de março de 2011


A indiferença


Primeiro levaram os comunistas,

Mas eu não me importei

Porque não era nada comigo.


Em seguida levaram alguns operários,

Mas a mim não me afectou

Porque eu não sou operário.


Depois prenderam os sindicalistas,

Mas eu não me incomodei

Porque nunca fui sindicalista.


Logo a seguir chegou a vez

De alguns padres, mas como

Nunca fui religioso, também não liguei.


Agora levaram-me a mim

E quando percebi,

Já era tarde.

Bertolt Brecht

Dedico este poema a todos os Comunistas, Operários, Sindicalistas e Padres, e aos que o não são.

Aos que por ignorância, preguiça, egoísmo ou uma qualquer des-vontade a que chamaram, indevidamente, rebeldia, se entorpecem na Indiferença e pungem a vida aos ombros de cangalheiros.

Aos outros – os rebeldes, os Prometeus que desafiam o Poder perverso e sofrem, sangram briosos e inabaláveis.

A esses que acreditam, lutam, vibram, amam e constroem enquanto os outros, Indiferentes – resignados, descontentes de vãos-de-escada, servos lambe-gravata, mesquinhos e invejosos, felizes-da-miséria-alheia, desdobráveis, policopiáveis, descartáveis – se vão arrastando como tapetes amarfanhados onde quem quer avançar Tropeça!

Porque outros, ainda outros! hienas famintas se alimentam dos cadáveres abandonados no campo deserto da Indiferença.

Dedico-o também a mim, todos os dias como uma prece.

Raquel

23/03/2011

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

VIII – ENCONTRO

No rosto do outro um sorriso como se tivesse uma máscara de argila seca na cara

Estava a ler o jornal e um fulano-tal cumprimenta-o

A conversa de ocasião (igual a todas as outras) começa a jorrar até ao nº do outro piscar no visor onde se lê «senha» e «mesa»

E os números piscam vermelhos e electrónicos por baixo

Assim sabemos que chegou a nossa vez

Todos temos a nossa vez, julgo eu

O fulano-tal fala um monólogo a que o outro acena com a cabeça

Com os olhos pregados nos mosaicos cinzentos salpicados de preto e branco

Que forram o chão

O fulano-tal tem uma imensa desenvoltura a articular conversa-de-ocasião

O outro sorri como se a máscara de argila se tivesse quebrado em lascas

O seu número piscou vermelho.

VI

Aqui

Em espera na Segurança Social

As pessoas aproveitam a conversa de ocasião que tendem como a massa de fazer rissóis

Para queimar o tempo de uma manhã inteira.

O ardina

(já me esquecia que se extinguiram os ardinas)

A papelaria lá de baixo vende jornais e revistas de queimar o tempo de uma manhã inteira

As escadas rolantes sobem e descem corpos atónitos

Impacientes

Outros espalmam-se nas cadeiras a tempo inteiro

Na sua ocupação de desemprego

Os números passam vermelhos

Electrónicos

Demorados

Todos temos um número

Aqui e em todo o lado.

III - ANGÚSTIA

Esmagada

Respiração intercalada de oxigénio sujo

E nicotina

No peito um enorme enchimento para almofadas

Sintético (e não biodegradável)

O estômago espalmado

Como aspirado para obter o vácuo

Nas pernas um tremor, como no rosto

Nos lábios, nas pálpebras, no olhar.

(Deve ter sido assim que nasceu a moda oitocentista do peito-de-rola).

II

Andamos às cambalhotas.

Quando tentamos endireitar-nos,

Aquela vertigem que escorre como a água de um balde.

I

Estamos aqui por uma questão de minutos

Em segundos dormentes

Entre o sol nascente e o ocaso

Perene

Apartados da história e da memória

Subterrâneos

Pendentes de um acaso.


Servos clandestinos de um deus inconstante

Os segundos caem irrecuperáveis

Em algarismos

Corremos a passos electrónicos

Pelas veias viciadas das cidades

Rumos centrifugados

Mastigados, indigestos

Ascendemos, sim

Pelas escadas rolantes da estação de Metro

Subterrâneos, opacos

Electrónicos, mecânicos, sós.

Raquel, 7/01/2011


quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Era uma vez uma janela

De uma casa à beira rio

Toda preta e aveludada

De luto como uma carocha

Não era casa era uma rocha


Era uma vez uma guitarrinha

Que todo o dia cantava

A história da carochinha

Toda preta e aveludada


Um chorinho morno bailava

A formiguinha embriagada

Que o carreiro abandonara

Numa manhã de trovoada

Entrara pela janela

Porque a porta estava trancada

Da casa preta e aveludada

Que era uma gruta encantada


E junto da guitarrinha

Dança, dança formiguinha

Que o carreiro abandonara


Era uma vez uma casinha

Toda preta e aveludada

Dali espreita uma janela

Com portadas escancaradas

Para o alto da colina

Onde acena La Fontaine

À formiga bailadeira

Que da guitarra se abeira

Como quem canta uma fábula:

«A formiga no carreiro

Vinha em sentido contrário

Caiu ao Tejo, caiu ao Tejo...»