« - Bem sei que podem perseguir-me, arrancar-me os olhos, torcer-me as orelhas, transformar-me em lagarto, em morcego, em aranha, em lacrau! Mas juro que não hei-de ser infeliz PORQUE NÃO QUERO.» [Aventuras de João Sem Medo - Panfleto Mágico em forma de Romance, José Gomes Ferreira] «Fica a saber claramente:não trocaria a minha desgraça pela tua servidão.» [Fala de Prometeu, em Prometeu Agrilhoado, Ésquilo]
sábado, 24 de dezembro de 2011
Em despedidas lentas
Murmúrios de cascos rompem as águas
Densas
A paisagem baloiça em agonia
E a cidade despede-se de janelas fechadas.
Na outra banda
As casas diminutas tropeçam nos “outdoors” publicitários
(Em inglês importado por avultadas quantias)
O mar avança como no cinema
O tempo solta-se
Na distância irreversível da saudade
O mar tumular lamenta-se
Do infinito.
Num quebranto de ondas resignadas
Os corpos repousam em tumbas magníficas
Erigidas de dor e pranto
O mausoléu
Por detrás da última serra
Entoa o lamento secular dos homens.
quinta-feira, 2 de junho de 2011
quarta-feira, 11 de maio de 2011
quarta-feira, 6 de abril de 2011
POEMA INDIZÍVEL
TRAGO
Trago na mão caneta e papel
Para escrever as palavras que não hão-de ser ditas
Trago na mente as ideias rasgadas
Nos voos nocturnos de sonhos remotos
Trago nas mãos o Nada
Do trabalho arrastado dos dias de Inverno
E os espasmos das horas enganadas
Trago os caminhos na memória esquecida
Em que vi das paisagens o negrume e o ódio
Trago os silêncios amargos
Das conversas nunca encetadas
Trago o Não dos olhares resignados
Dos que perduram
E o luto dos livros queimados
Em que me amortalham.
Trago um gole de vinho acre.
Do solo crestado e estéril
Sem fruto, sem chão, sem vida.
Raquel
31 de Março de 2011
quarta-feira, 23 de março de 2011
A indiferença
Primeiro levaram os comunistas,
Mas eu não me importei
Porque não era nada comigo.
Em seguida levaram alguns operários,
Mas a mim não me afectou
Porque eu não sou operário.
Depois prenderam os sindicalistas,
Mas eu não me incomodei
Porque nunca fui sindicalista.
Logo a seguir chegou a vez
De alguns padres, mas como
Nunca fui religioso, também não liguei.
Agora levaram-me a mim
E quando percebi,
Já era tarde.
Bertolt Brecht
Dedico este poema a todos os Comunistas, Operários, Sindicalistas e Padres, e aos que o não são.
Aos que por ignorância, preguiça, egoísmo ou uma qualquer des-vontade a que chamaram, indevidamente, rebeldia, se entorpecem na Indiferença e pungem a vida aos ombros de cangalheiros.
Aos outros – os rebeldes, os Prometeus que desafiam o Poder perverso e sofrem, sangram briosos e inabaláveis.
A esses que acreditam, lutam, vibram, amam e constroem enquanto os outros, Indiferentes – resignados, descontentes de vãos-de-escada, servos lambe-gravata, mesquinhos e invejosos, felizes-da-miséria-alheia, desdobráveis, policopiáveis, descartáveis – se vão arrastando como tapetes amarfanhados onde quem quer avançar Tropeça!
Porque outros, ainda outros! hienas famintas se alimentam dos cadáveres abandonados no campo deserto da Indiferença.
Dedico-o também a mim, todos os dias como uma prece.
Raquel
23/03/2011
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
VIII – ENCONTRO
No rosto do outro um sorriso como se tivesse uma máscara de argila seca na cara
Estava a ler o jornal e um fulano-tal cumprimenta-o
A conversa de ocasião (igual a todas as outras) começa a jorrar até ao nº do outro piscar no visor onde se lê «senha» e «mesa»
E os números piscam vermelhos e electrónicos por baixo
Assim sabemos que chegou a nossa vez
Todos temos a nossa vez, julgo eu
O fulano-tal fala um monólogo a que o outro acena com a cabeça
Com os olhos pregados nos mosaicos cinzentos salpicados de preto e branco
Que forram o chão
O fulano-tal tem uma imensa desenvoltura a articular conversa-de-ocasião
O outro sorri como se a máscara de argila se tivesse quebrado em lascas
O seu número piscou vermelho.
VI
Aqui
Em espera na Segurança Social
As pessoas aproveitam a conversa de ocasião que tendem como a massa de fazer rissóis
Para queimar o tempo de uma manhã inteira.
O ardina
(já me esquecia que se extinguiram os ardinas)
A papelaria lá de baixo vende jornais e revistas de queimar o tempo de uma manhã inteira
As escadas rolantes sobem e descem corpos atónitos
Impacientes
Outros espalmam-se nas cadeiras a tempo inteiro
Na sua ocupação de desemprego
Os números passam vermelhos
Electrónicos
Demorados
Todos temos um número
Aqui e em todo o lado.
III - ANGÚSTIA
Esmagada
Respiração intercalada de oxigénio sujo
E nicotina
No peito um enorme enchimento para almofadas
Sintético (e não biodegradável)
O estômago espalmado
Como aspirado para obter o vácuo
Nas pernas um tremor, como no rosto
Nos lábios, nas pálpebras, no olhar.
(Deve ter sido assim que nasceu a moda oitocentista do peito-de-rola).
I
Estamos aqui por uma questão de minutos
Em segundos dormentes
Entre o sol nascente e o ocaso
Perene
Apartados da história e da memória
Subterrâneos
Pendentes de um acaso.
Servos clandestinos de um deus inconstante
Os segundos caem irrecuperáveis
Em algarismos
Corremos a passos electrónicos
Pelas veias viciadas das cidades
Rumos centrifugados
Mastigados, indigestos
Ascendemos, sim
Pelas escadas rolantes da estação de Metro
Subterrâneos, opacos
Electrónicos, mecânicos, sós.
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
Era uma vez uma janela
De uma casa à beira rio
Toda preta e aveludada
De luto como uma carocha
Não era casa era uma rocha
Era uma vez uma guitarrinha
Que todo o dia cantava
A história da carochinha
Toda preta e aveludada
Um chorinho morno bailava
A formiguinha embriagada
Que o carreiro abandonara
Numa manhã de trovoada
Entrara pela janela
Porque a porta estava trancada
Da casa preta e aveludada
Que era uma gruta encantada
E junto da guitarrinha
Dança, dança formiguinha
Que o carreiro abandonara
Era uma vez uma casinha
Toda preta e aveludada
Dali espreita uma janela
Com portadas escancaradas
Para o alto da colina
Onde acena La Fontaine
À formiga bailadeira
Que da guitarra se abeira
Como quem canta uma fábula:
«A formiga no carreiro
Vinha em sentido contrário
Caiu ao Tejo, caiu ao Tejo...»