sexta-feira, 19 de abril de 2013


Estação Terminal

O som dos ferros tritura os segundos da paisagem. A urbe engolida pelo tempo. O subúrbio traz a indiferença das horas. Fica para trás. Atrás de mim. Recua. Recua no tempo ilimitado. O subúrbio é um poço sem eco. Vai até Lisboa. Entre Sintra e Lisboa um poço sem eco. Um espelho baço. Viagem de aço.

Trago da cidade o bater dos ferros. O guincho metálico da adolescência. O som metálico entrecortado pela voz gravada de mulher. No comboio. Qual mulher? - «Estação terminal». Viagem para a eternidade. Chego a Sintra. - «Estação terminal». Terminal é a evasão. O ruído o betão o negrume as sombras sobrepostas das estradas a escola onde não fui hoje. Tudo ficou triturado ao som dos ferros. Esta é a minha música. Sem melodia. Cadência percutida. Este é o comboio que me leva a Sintra.

Estado terminal – subo a serra e o cheiro a terra e musgo devolve-me o pensamento.
Este silêncio tem mais palavras do que a tua voz.

Sintra tem o olhar estendido entre a serra e o mar. O arvoredo engole-me os passos. Subo, subo, fujo. De mim.

Do outro lado estende-se o vasto subúrbio. Não o vejo. Adivinho-o para além da névoa. Que me alberga. Ainda oiço o som dos ferros. O comboio e a estação terminal. Esta-ção. Ter-mi-nal.

Subo a serra como quem levita e se desprende. Subo até ao ponto mais alto. Onde existe um resto de convento. Na embriaguez do húmus. Numa náusea avisto o mar. O vasto mar... um extenso monólogo.

O mar não é apenas o lago que vejo ao longe. É onde me revejo no espelho dos pensamentos. Onde mergulho e o meu corpo se dissolve.

Nesta gradação de verdes consigo pressentir o teu amor por mim. Não que mo dissesses. Não que te conheça. Mas os meus passos sobre o empedrado escorregadio, polido pelos passos do tempo, o som da água que escorre nas veias da serra e que as fontes choram. A terra que anuncia o teu odor. Tudo me avisa o teu amor por mim. Como numa pintura. Justamente naquela janela onde vejo a tua eterna espera. Aquela janela em guilhotina tornada a sul onde se suicidam pensamentos desde as horas extintas do passado. É a janela onde me apaixono. Decidi assim, do outro lado da estrada, há cerca de um mês e meio, ou pouco mais. Chovia e a janela fechada. Esbocei-te nas gotas da chuva fria.

Eu não estou à tua espera. Não trago relógio nem sei ler o sol. Hoje está sol depois do bosque cerrado. Já me esquecia de te avisar, a ti, que esperas na obscuridade. Eu não sei quem és na solidão cumprida. Não mais do que um esboço feito de chuva. Uma janela fechada, de guilhotina. Deste solar mudo.

Quantos servos de vidas sofridas para erguer estes palácios? Estes bosques, jardins esculpidos na serra. Para ser teu o prazer do ócio. Tu, sentada nesse demorado retrato, que espreitas por uma moldura entalhada. Sólida. Dourada. Que te entregas nesse olhar impreciso que atravessa os tempos.

Sinto as horas lânguidas dos espectros. O folhear dos livros dos poetas. E os livros sem letras dos analfabetos. Dos que esculpiram a eternidade na serra. Leio no silêncio dos teus lábios o que não posso descrever. Sintra é a confidência do mais profundo desejo, da eternidade imaterial do mistério. Onde a Natureza e o Homem se abraçam num beijo imenso.  É luxúria!, neste brotar constante de arte e húmus.

Regresso ao Cacém. Aparece o João. Não Foste às aulas? Estive a fazer um trabalho. O que é que estás a ouvir? Gabriel o Pensador. «Eu quero viver numa favela. Eu quero viver numa favela. Eu quero viver numa favela...». Esta cidade não tem melodia, percute-se no barulho dos ferros. O «amor» entra no dicionário e sai no teste de Português. Como na viagem de comboio. Viagem de aço. O amor é a estação terminal.


Raquel Coelho

quarta-feira, 21 de novembro de 2012


OS CROCODILOS


Parem!
Parem de me enviar emails de fazer tudo e mais alguma coisa!
Peças de teatro, garagens para alugar, concertos, conferências, ares condicionados, faltas de ar, livros lançados, contas lançadas, bailados, poesia, impressoras, cartões, contabilistas, malabaristas, hotéis em promoção, fins-de-semana-de-sonho, sonhos aos fins-de-semana, palhaços para rir, gargalhadas postiças, aparelhos auditivos, ópera para surdos, petições com milhares de assinantes e tudo sempre igual, pior, massacres, paisagens, anedotas, meninos perdidos, e depois outro email a dizer que era tudo mentira; que não há meninos perdidos, e que era spam, e outra a denunciar fraude ou uma vigarice qualquer na moda, e o sem-abrigo pintor que não pode nem a arte nem a vida, e outro a dizer que vamos ser pobres, pobres, muito pobres!, com os pobres todos do mundo a marchar em passo de solidariedade, e os que hão-de ser pobres, e guerra com muito sangue, e ricos na outra ponta, tão distante que até parece que vivem num planeta achado pela NASA há meia dúzia de dias, que afinal também não existe, nem a NASA, nem os pobres, nem os dias, e cada vez mais ricos, e cada vez mais pobres, e depois imagens de gatinhos, macacos, elefantes, tigres e viagens pelo mundo inteiro, e o mundo a ser tão lindo, tão lindo!  E ao lado, virando a página dos crocodilos, estão os meninos famintos só com os ossos e o ventre dilatado, e ao lado dele o Papa a apodrecer de ouro na sua podridão milenar, e os crocodilos com aquelas bocarras escancaradas a não comerem nem o Papa nem os ricos, não comem nada, os pobres, na sua inocência inaugural... e cabiam lá todos... o Papa, os ricos, a caridade e a minha agonia.
Tocou o telefone. Era uma espécie de Pai-Natal chamado Citybank... malditos crocodilos!

21/11/12

Ando aqui à procura não sei do quê.

Hoje, o meu vazio é uma espécie de pressa de chegar.
Chegar aonde? E por onde ir?

Este vazio que me dispersa e me faz escrever
Escrever sem rumo
Dissipa o tempo
Essa pressa 
Essa espera, sem estar à espera de nada.

Será do silêncio
Todo o dia quebrado pelo motor do computador
Já velho?

Este não-sei-quê sem ossos e sem pele
Descarnado informe sujo frio
Esta voz onde o apelo é sem vento que o leve

É deste grito que escrevo
Esta pressa
Este estado de fuga sem Lá nenhum para onde ir

É deste grito seco do corpo exangue e rouco
Este olhar p’ra dentro e só um eco
Um eco no poço sem muro
Perdido entre o mato e os silvados
Do abandono

Onde nem no reflexo disforme
Me desenho.

21/11/12

quinta-feira, 28 de junho de 2012


Portugal

Esculpido pelas marés
Porto distante
Que o oceano abraça
Em solidão

A inconstância das ondas
A ilusão da espuma
O abismo das águas fundas

És tu, Portugal
Uma miragem
Um eco, um vento
Uma passagem

Porto de luz
És o cais nocturno
(Onde dormitam os astros)

Improvável
Sem aurora

O amanhã é só uma palavra
Que o mar retalha em espasmos lentos
Uma promessa adiada.

Raquel
28/06/2012

domingo, 17 de junho de 2012


Domingo de manhã. O café da Estrada de Benfica. O homem na última mesa do café, estava como quem lê o jornal em desamor. Era só, na sala contígua à do balcão, e observava em dor os pares, os grupos, as conversas animadas da primeira sala. Observava os sozinhos que, como eu, à pressa, se acercavam do balcão, enquanto simulava ler aquele jornal aberto na estratégica página da solidão. E no seu rosto vincado havia traços de repúdio, abeirado do sofrimento. Em precipício. Dois jovens sugiram, mão na mão, sorrindo, e o homem ocultou-se, impenetrável, por detrás daquele biombo, que na capa dizia «Público».

17/06/2012
Raquel

Domingo de manhã. Estrada de Benfica. Passou um cão igual à dona, presos pela mesma trela; o mesmo olhar, o mesmo andar, a mesma altivez. Mas o cão, que trazia a vantagem de não ser humano, olhou-me como quem cumprimenta.

17/06/2012
Raquel

Domingo de manhã estacionada junto ao vidrão. O homem passou em passo lento com dois sacos de assas, um em cada mão, cheios com garrafas de litro vazias. Olhei para os sacos e fixei-o, sem reparar que ali me ficara o olhar suspenso enquanto os pensamentos me alhearam. O homem com a alma recurvada de ressaca, reparou que o observava e desviou-se, e aos sacos, fugindo à possibilidade da sua bebedeira do dia antes. Ela notava-se num amanhecer em vincos depois da festa, mas o meu olhar estava suspenso, não no dedo que aponta que te embebedaste, mas numa quase nostalgia demasiado lúcida de desejo de uma festa... embriaguez falhada. O som dos vidros estilhaçados no contentor: a música remanescente da véspera. Moral da história: Quando se trabalha aos Domingos, bebe-se a ressaca alheia. Moral da história II: quando não se tem festa há muito tempo, não estacionar junto ao vidrão. Moral da história III: Faça-se Festa!


17/06/2012
Raquel